Memórias De Maniçoba
Reinaldo Sousa
Kinder- und Jugendbücher / Biographien
Beschreibung
Se este livro fosse um rio, suas águas não seriam cristalinas. Seriam barrentas, como as do açude que banhava nossas tardes, misturando raízes, folhas secas e o sal das memórias que teimam em não dissolver. Aqui, não há apenas uma vida contada, mas um entrelaço entre o que fui e o que Aparecida — ou Maniçoba, como insisto em chamá-la no segredo das páginas — foi se tornando em mim. Tudo começou nos cadernos de capa dura da Escola Lourival Baptista, onde meus rabiscos infantis eram hieróglifos de um mundo que eu mal entendia. As paredes verde-claras, enfeitadas com santinhos colados a durex e letras do alfabeto, testemunhavam meus primeiros pactos com o mistério: por que o céu era azul? Por que as formigas seguiam filas? E por que o sino da igreja tocava sempre às 18 horas? Entre essas indagações, o João Salônio foi meu primeiro deserto — e meu primeiro oásis. Ali, sob o sol que torrava a terra do sertão, descobri que a vida, como uma laranja madura, se revela em gomos. Fugíamos para os açudes, colhíamos umbu ainda verde (para comer com sal, é claro), e corríamos até que as pernas doíam, como se a infância fosse uma corrida contra o crepúsculo. Sou geógrafo, sim, mas não daqueles que se perdem em mapas coloridos. Minha geografia é outra: é o cheiro de terra molhada depois da primeira chuva de inverno, o estrondo das trovoadas de verão que ecoavam nas paredes de taipa, as ladainhas de Celso, cantadas como se cada verso fosse um fio que costurava o céu à terra. Minha alma foi tecida nas ruas de terra batida ou, no máximo, calçamentadas , como dizíamos, rindo da invenção da palavra. As brincadeiras nos carrinhos de rolimã que desciam as ladeiras como cometas, e nas partidas de botão no pátio vazio do João Salônio, eram nosso passatempo. Mas, nada contra os Smartphones tá? Ah, e como esquecer as histórias de assombração? A Rasga Mortalha, que supostamente voava quando os sinos da matriz badalavam, era nosso bicho-papão particular. Anos depois, descobrimos que eram apenas corujas, mas até hoje, quando ouço o tinir dos sinos da igreja, à época tocados por Dona Dé, sinto um calafrio. Maniçoba, para mim, nunca foi só um lugar. Era um organismo vivo. Quando deixei o João Salônio e parti para a Escola Agrotécnica de São Cristóvão, levei-a comigo. As fugas de domingo para tomar cerveja nos botecos da redondeza, as incursões pelos matos cheios de coqueiros — tudo era um jeito de prolongar aquela liberdade que só a adolescência sabe dar. Mas foi na universidade, entre livros empilhados e noites de insônia, que entendi: a pesquisa era meu novo êxodo. Cada arquivo empoeirado, cada conversa com a Professora Vera França — minha guia na arte de pesquisar —, eram passos de uma peregrinação. Não buscava respostas, mas perguntas que doíam como espinho de mandacaru. Hoje, na Universidade Estadual de Alagoas, não sou apenas professor. Sou plantador. Preparo o solo das aulas com teorias, rego com debates e colho dúvidas que brotam como ervas daninhas — lindas e necessárias. Nas minhas aulas, a geografia não é mapa, é carne. Falo de lutas camponesas, de operários urbanos, de teorias que ganham vida nas histórias dos alunos que vêm do litoral, do sertão, das quebradas. Aprendo mais do que ensino: eles me trazem o cheiro de mar, a aspereza da caatinga, o suor das feiras livres. Este livro é meu regresso. Um reencontro com a Maniçoba que habita em mim — dos botecos onde se discutia futebol e política às cacimbas onde a água era tão gelada que doía nos dentes. Convido você a caminhar por essas páginas como quem anda descalço em terra úmida: sinta a textura das palavras, deixe que as memórias grudem em seus pés como argila. Aqui, não há tinta, há sementes. Plante-as. Deixe que cresçam em seu imaginário como um pé de umbuzeiro: torto, rachado, mas com raízes tão profundas que nem a seca mais brava será capaz de arrancá-lo.
Kundenbewertungen
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